Navegar é preciso, viver não é preciso.
O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse, «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo,
«El-Rei D. João Segundo!»
«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso.
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse,
«El-Rei D. João Segundo!»
Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes,
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»
Fernando Pessoa
Brasil, 22 de abril de 1500. Na beira da praia um grupo de índios olha uma estranha “canoa” aproximar-se da costa. Não é daquelas comuns, aquelas às quais estavam acostumados a lidar desde a sua mais tenra infância. Esta, ao contrário das outras, assombrava devido a sua descomunal magnitude – 25m de comprimento, 7m de largura e 30m de altura. Sem dúvida a maior que eles haviam visto até então. Tal fato era mesmo de atrair a curiosidade dos transeuntes que se reúnem a ver o que era tal aparato. De repente da canoa grande vem uma menor e com pessoas de fala estranha e jeito estranho de se vestir. Não sabiam eles que esses seres vieram do ouro lado do mar, do desconhecido. Bem, tal deve ter sido a sensação de espanto dos indígenas que tiveram o primeiro contato daqueles que, anos depois seriam seus dominadores. Também não é de espantar que o outro lado se sentisse constrangido diante de uma cultura tão diversa da sua – homens andando nus, “sem pudor algum em cobrir suas vergonhas” e com a boca espetada. Tal assimilação era diversa por demais a uma mentalidade que estava emergindo de um ciclo de profundas crises e reconstruções de conceitos. O “descobrimento” do Brasil, e das Américas num todo, foi, antes de tudo, um triunfo para os descobridores que viam nisso o resultado de vários empreendimentos a fim de dilatar a Fé e o Império, este último principalmente. Não é de surpreender que tal visão desse o aspecto heróico às narrativas e crônicas. Não negamos aqui o caráter conflitante que surgiu com tal façanha. Foi também um choque, mas isso é uma história posterior. Por ora, nosso objetivo é ver, e isso dentro dos limites do gênero ‘artigo’, como a chegada européia aos solos americanos foi resultado, não de um acaso, mas de um longo caminho de pesquisas, de tentativas e de construção de identidade coletiva – a noção de modernidade.
Mas o que era “ser moderno” naquela época? Até hoje, essa palavra gera graves discussões nos meios sociais e acadêmicos. Geralmente, quando afirmamos a nossa modernidade, o fazemos para contrapor um passado, seja ele distante ou próximo – queremos dizer que há algo em nós que nos faz agir diferente daqueles que são da geração passada. No entanto, nos meados do século XV, dizer-se moderno carregava intrínseco toda uma gama de questionamentos a respeito da época e dos conceitos em voga. Mas esse questionar era um indagar que criava novos conceitos, dentre o eles o de medieval e idade média. E esta como o passado que queríamos negar. Mas o que diferenciava os “modernos” dos “medievais”?
Segundo Huizinga, o zeitgeist medieval era caraterizado pelo teor violento da vida. Tudo nele era um extremo. Ía-se do ódio ao perdão com uma facilidade quase pueril. No primeiro caítulo de seu livro, O declínio da Idade média, o autor explica o quanto esse teor violento era forte. Segundo ele, o homem medieval era um angustiado, um ser levado pelos sentimentos extremos – ódio, compaixão, cobiça, solidariedade – que atuavam de uma maneira tal que as pessoas nem se davam conta das contradições existentes entre certos atos. Se se louva alguém pela atitude de dar o perdão incondicional, como todo bom Cristão, também não se deixava de ir às praças públicas a fim de se ver um condenado morrer, e de maneira brutal, classificando isso como “bela morte”. O cheiro de sangue e rosas era, pois, o aroma perene dos espíritos desses homens. Deve-se frisar também, que tais extremos eram reflexos da vida ao redor de si - a sensação de desamparo diante das circunstâncias, na verdade a vida era mais perigosa no período medieval, “as calamidades e a indigência eram mais aflitivas que presentemente; era mais difícil proteger-se contra elas e encontrar-lhes alívio” (Huizinga). Sem falar também da grande distância social erigida em cima da ordem vigente. Tudo isso vinculado ao ambiente religioso que estava em volta. Na oração Salve a Rainha, percebemos que o eu lírico mostra este mundo como um vale de lagrimas e roga à virgem que o auxilie, pois só Deus era o alívio, e é em volta dele que há a verdadeira vida. Enfim, era um mundo sem objetivo ou perspectivas de melhora, rezemos e esperemos o fim do mundo.
Na verdade tudo convergia para se pensar assim. Durante mais de mil anos as pessoas conviveram com situações políticas instáveis desde o fim da autoridade romana no Ocidente. Segundo Jaques LeGoff, a idade média foi uma constante tentativa de retorno à essa época áurea que ficou para trás. Os reinos que emergiram por cima das ruínas de Roma eram reinos de caráter esporádico e em constante guerra com os vizinhos, o que ocasionavam desastres principalmente aos mais pobres. Percebemos também que, no século XI, ocorreu um enfraquecimento do poder central para a nobreza campesina. As cidades também haviam perdido sua importância. Havia um comércio, mas este era quase que inexistente - nada comparável ao que ocorria no final do império e antiguidade tardia. No século XIII os árabes conquistam parte da península ibérica, isto é, o Inimigo venceu os exércitos de Cristo – é claro que os árabes contribuíram em muito para o que mais tarde seriam as grandes navegações, mas quem pensaria nisso àquela altura? No século posterior a peste negra dizimou a vida de mais de 25 milhões de pessoas. Enquanto a Igreja se preocupava em empreender cruzadas que acabavam falhando, a maioria.
Ora, quem lê somente até aqui, pensa que realmente a idade média foi um período de obscuridade total dos espíritos. Entretanto, não houve uma quebra total com o mundo clássico. No início da antiguidade tardia Agostinho de Hipona escreve sua obra, A cidade de Deus, com base na filosofia de Platão; no século XIII Tomás de Aquino redescobre Aristóteles. Quer dizer, grande parte das obras clássicas foi preservada nos mosteiros, que originariam as universidades. E é graças a eles que os modernos se houveram da arte clássica para lograr seu “renascimento”.Por outro lado, as cruzadas possibilitaram um maior intercambio entre Oriente e Ocidente e a criação de novas rotas comerciais, como a rota da seda, e a troca de informações. Deles também os europeus extraíram um maior conhecimento matemático e geográfico, que depois seriam de extrema utilidade para os futuros navegadores. Daí não ser surpreendente o pioneirismo ibérico frente aos demais no que concerne à tecnologia náutica, Ja que foram eles que conviveram com os mouros mais de perto. Mas voltemos ao foco. Antes das mudanças técnicas e artísticas, as cruzadas fizeram o europeu perceber que o mundo era bem maior que o que se pensava. Não aquela coisa limitada que a Igreja dizia, mas um mundo para ser descoberto mais atraves dos sentidos que somente da fe'.
O homem moderno, então, era o homem que se deu conta da sua utilidade como tal, que se percebia como agente atuante, dotado de vontades proprias e de desejos. E de meios para logra-los. Entretanto o nascer dessa nova mentalidade trás consigo implicações cruciais: a partir do momento em que o Eu percebe em si o poder de transformar, logo surge nele, a partir da análise com base no conhecimento empírico (SOCORRO FERRAS, 2000), a necessidade de domínio O que difere este homem do das gerações anteriores e' o caráter violento dessa necessidade; o medieval domina a natureza devido a um fator circunstancial - e quando falamos em circunstancia deixamos implícito o contexto histórico -, isto e', o principal objetivo destes homens não era dominar a natureza, mas viver para agradar a Deus, posto que Ele era o centro de tudo (teocentrismo). Já o homem moderno não, este dominava/transformava/criava com objetivo justamente de dominar/transformar/criar, porque ele agora queria agradar a si próprio De certa forma podemos dizer que, juntamente com os avanços científicos e estruturais, a modernidade foi uma redescoberta do prazer, não só o prazer intelectual, mas o prazer físico também
Com o ressurgimento do caráter central das cidades e do fluxo comercial, um outro problema passou a apresentar-se: a falta do ouro. Vários autores documentam que a questão já se mostrava no seculo XIV (LINHARES, S/D). Houve uma exploração intensa dentro de territórios como o da atual Alemanha e no leste europeu, entretanto essas jazidas não eram suficiente para alimentar o comércio cada vez maior dentro da Europa. A falta do metal precioso provocou aumento nos gêneros comercializados, o que dificultava as vendas, e provocavam prejuízos a nascente burguesia. Ademais, como nos dizeres de Linhares, era preciso contornar o monopólio veneto-genoves e rumar novos caminhos em relação ao Oriente." O seculo XIV foi um tumultuoso período de revoluções Abismos sociais e inquietações econômicas surgiam em toda parte, gerando em todos os setores da vida" (Linhares, Ed. Campus, S/D). Resumindo, havia um problema, o homem queria se expandir, queria trilhar novos ares, bancar seus prazeres, mas como fazer isto?
No conjunto de territórios que compõem a entrecortada geografia europeia, a península ibérica tem um lugar de destaque no que concerne a questão acima exposta. Dona de uma posição estratégica privilegiada, ela sempre serviu de lugar de passagem para muitos povos. E, consequentemente, um lugar de troca de informações Portugal havia passado por um período conturbado, na segunda metade do seculo XIV, logo apos uma crise dinástica, sobe a coroa a estirpe de Avis. Segundo vários autores, a ascensão dessa dinastia representou o ponto de culminância dos vários processos de transformação pelo qual a península ibérica vinha passando. A proclamação de D. João I, nos mostra claramente quais eram os caminhos que os portugueses queriam traçar de agora por diante, principalmente a burguesia. Entretanto cabia ao novo monarca cumprir os anseios da nação, ou melhor, da elite que o proclamara. Sabemos que a Europa passava por um momento de crise inflacionária devido a falta de ouro, havia também a questão do monopólio dos genoveses e a necessidade de obter um caminho as Índias João sabia que não tinha condições financeiras de concorrer com os genoveses, e empreender uma cruzada seria fatal as finanças do reino. A única saída estava nesse mar tenebroso, habitado de feras e tão temido pelos homens daquela época
Muitas pessoas dão uma ideia simplista da conquista do Mar Oceano, atribuem-na apenas ao espírito aventureiro e religioso do lusitano. Socorro Ferraz, num artigo em comemoração dos 500 anos do descobrimento do Brasil, afirma, num dos trechos usa a palavra "insisto", no caráter errôneo dessas afirmativas. As conquistas empreendidas por Portugal estavam inseridas dentro de um contexto de modernidade. Para lograr tão grande empresa, os regentes da casa de Avis fizeram o maior esforço para reunir astrônomos, matemáticos, navegantes, geógrafos cartógrafos etc. Era um caminho difícil a ser traçado, o mar era incerto, entretanto já se havia uma base de conhecimento travada com o contato com os árabes Em 1415, com a conquista de Ceuta, tem inicio o processo de expansão marítima na costa africana. Juntamente com a exploração desse litoral, houve também a identificação das correntes marítimas, dos ventos e das coordenadas geográficas de cada sitio. Socorro também destaca na importância do geografo Mercator, "que representava os meridianos de longitude por paralelas equidistantes e as longitudes por perpendiculares aos meridianos. Como as linhas de latitude se espaçavam cada vez mais a medida que se aproximavam das regiões polares, os graus de latitude eram aumentado na mesma proporção que os de longitude" (Citado em Ferraz, 2000). A autora também destaca o papel que o conhecimento empírico teve nessas descobertas. A conquista das ilhas atlânticas e a sua colonização pode ser vista como uma afirmativa portuguesa do quão longe eles queriam chegar, e' claro que havia um fundo econômico e expansionista, mas de certa forma, foi também um ato de coragem. Manuel Correia de Andrade em seu artigo diz que antes da chagada lusa as terras brasílicas, os navegantes ja passavam perto da costa antes de ir as Índias Dai ser inconcebível dizer que tudo foi obra de acaso, de mero espirito aventureiro. Havia um conhecimento e havia um interesse, e esse interesse moldou os rumos que a história iria tomar posteriormente.
EPILOGO
Decidimos colocar o poema de Pessoa no inicio por ser, a nosso ver, o que mais fielmente exprime os medos e os anseios que levavam os portugueses a lograr tais empresas. O poema trata-se do choque entre um marinheiro e um monstrengo, este ultimo com certeza simbolizava os medos e as incertezas dos navegantes. O confronto e' constante nas duas primeiras estrofes. O monstrengo se mostra ameaçador, pergunta que era que tentava se assenhorear do seu mar sem fundo, mas o homem, por mais medo que tivesse, não desistia de sua empresa e respondia sempre: "El rei D. João segundo". A ambientação do poema mostra o caráter heroico lusitano - era noite e havia um monstrengo, e contra ele um homem ao leme. Na terceira estrofe o marujo fixa suas mãos ao leme e desafia literalmente o monstro. Na nossa concepção, Pessoa quis demonstrar como a expansão marítima foi uma história da superação do medo e do mito para um caminho de conquista e realização.