(Entra um soldado segurando uma bandeira do Brasil. A estende sobre a mesa e começa a olhar para ela)
SOLDADO (para a plateia):
Há ruinas que o homem visualiza. Fora dele. Aos olhos dele... ruínas daquilo que foi casa, bairro, vila e que hoje só são escombros. Pedra derrubando pedra. Bem, é assim que é a guerra. Sei que muitos de vocês deve imaginar isso dos filmes que passam na TV, dos relatos de ex-combatentes, sei que muitas de suas crianças brincam de soldado, polícia e ladrão e todas essas brincadeiras. Admito, eu mesmo brinquei muito disso. Mas a brincadeira de uma guerra, o filme de uma guerra, o livro de uma guerra, não é a guerra. Acreditem. (pausa) Mas não é isso que eu quero falar... desculpem. Eu estava falando dos escombros... sim, vi muitos deles. Alguns ajudei a criar, outros ajudei a evitar, mas há outro tipo de ruínas. Essas, os olhos não veem, os jornais não noticiam, é de difícil percepção. Sim, há outro tipo de ruína, mais volátil, porém mais densa. Mais íntima, porém mais cruel: há a ruína do retorno a casa. Aparentemente tudo está no lugar: a mesa, as cadeiras, os retratos na parede, mas nada está no mesmo lugar se aquele que retorna não é mais o mesmo. (Explora o ambiente) Quando saí da quarta divisão de tiro do vigésimo regimento da infantaria, fui condecorado e o coronel me deu esta bandeira que estou carregando (mostra bandeira ao público) e me disse: “Vai, filho, volte para casa, para a mãe-pátria”. Peguei o avião e pisei de novo em solo nacional, portando essa bandeira. Porém o rosto que eles viram chegar foi o de um herói manco que desaprendeu tudo, o de um homem ferido; não o de um guerreiro, mas o de um animal ferido. (Silêncio) Entretanto havia ainda a esperança, vou chegar em casa e mostrar essa bandeira para meus amigos, meus primos, minha mãe. E quando cheguei em casa tudo o que eu encontrei foi uma senhora doente, feliz por minha volta, mas sem força pra comemorar. Os meus amigos e primos, os que não haviam morrido, ainda estavam no front ou estavam tão amargurados quanto eu que não tinham forças para comemorar. Mas as palavras do coronel ainda soavam “volte para a mãe-pátria”. E parece que só ela me sobrou. Isso aqui... um pedaço de pano, algo por que todo soldado daria a vida. Algo que todo regimento jura antes de ir ao combate... isso aqui. Bandeira. flâmula, estandarte, pendão... com suas cores e seus símbolos. Isso aqui, que o capitão dizia “é a mãe de vocês agora”. (Pausa) Se isto é minha mãe, quem é aquela senhora que está na sala descansando frágil? Se isto é a mãe, quem são aquelas que choram pelos caídos? E quem é a mãe daquelas que choram? Poderia eu queimá-la, mas esta não choraria; poderia rasga-la, mas não esboçaria reação; poderia eu fugir, mas do céu ela tremularia ao vento que sopra. Sim, neste ponto posso admitir que lembra muito uma mãe... mas tem diferença entre deixar pra lá e chorar a partida do filho, entre não reagir e ser corroída pela perda de alguém querido. Ah, quando se se vai ao enterro de um amigo e que a mãe dele está ao seu lado, a bandeira não consola, nem traz ele de volta. Não, ela não reergue as ruínas que asfixiam o peito de quem volta pra casa. Vejam, meus senhores! Vejam! De que me valeu o sangue vertido todos os dias, de que valeu condecoração, de que valeu matar, de que valeu ser quase morto, a fome, o medo! Morrer por isso aqui? Pátria? Ouvi de um moço certa vez “minha pátria é minha casa”. E que se fará daqueles que não tem casa? Que se fará daqueles que não tinham quem os esperasse no desembarque? E dos vencidos? Que se fará... respondam! Todos vocês amam o que não veem! É muito fácil falar de patriotismo, é muito fácil falar de inimigos, mas quando foi que vocês olharam nos olhos daqueles que você é programado a odiar e quando foi que vocês amaram de verdade os heróis que aprenderam a amar? E que patriotismo há quando nas ruas vocês se digladiam pelos seus partidos, times de futebol, candidatos políticos? E não é bom soldado aquele que, por amor a isso tudo, deixou o maior número de cadáveres do inimigo no chão? Admitam, meus senhores, que no fundo, vocês estão indiferentes a isso tudo. Admitam que no fundo, a casa é mais importante que a terra, que o bem da sua barriga é mais importante que o bem da nação. Talvez aí e só aí, quando estiverem diante de uma rajada de metralhadora se lembrem que o objetivo maior nunca foi a pátria, mas voltar vivo. Não foi país nenhum, mas foi o sofá, a mesa em que se possa descansar. Talvez, repito, só aí, olharão para a bandeira e dirão... é um pano! Não é mãe... que se exploda esse ufanismo, que se dane o simbolismo! Nada disso importa quando é de ruínas que estamos falando. (solta a bandeira no chão e sai)
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